Planeta Brennand

31/10/2011 00:21

Certa vez, a Oficina Brennand recebeu a visita da velha senhora. Ela era a acompanhante de uma moça que parou para comprar uma peça “rapidinho” e seguir estrada. Sem paciência com criações artísticas, decidiu aguardar no carro. Esperou, esperou e nada da amiga. Irritada, foi descobrir a razão da demora. Deve se arrepender até hoje. A velha senhora deu de cara com esculturas e imagens – imóveis, mas não inertes – espalhadas por toda parte. “Seres” à solta em seu habitat natural. “É uma carnificina”, horrorizou-se. Francisco Brennand, 84 anos, não esconde o prazer em lembrar a história: “Eu chamo de A visita da velha senhora, como naquela peça de Friedrich Dürrenmatt”.
Mal imagina, mas a velha senhora foi uma excelente crítica de arte. “Foi uma das melhores que já recebi. São essas críticas que me interessam, porque dizem algo diferente. Vou dizer o que sobre o trabalho de outro pintor, que ele já não saiba? A velha senhora viu criações que evocavam um horror ‘conradiano’, viu o horror do parto”, lembra o pintor. Numa exposição dos anos 1970, Brennand recorda outra crítica, durante rara exposição numa galeria em São Paulo. Uma garotinha, após olhar com atenção todas as peças dispostas na sala, solta um beijo para a sua recriação de Palas Atena, a deusa grega da guerra. Do gesto (e do comentário ali contido), jamais esquece.
Em princípio dos anos 1980, quando a Oficina Brennand ainda não era um dos pontos turísticos mais disputados da Região Metropolitana do Recife, sua obra foi merecedora de uma crítica definidora dos anos que viriam pela frente. “Durante 10 anos, ergui isso aqui sozinho. Ninguém vinha até aqui”.
Como um Crusoé da Várzea, um dia se surpreendeu com um ônibus cheio de turistas, curiosos em entender o que era aquele “templo”, com aquelas construções plantadas no meio do nada. Na despedida, o motorista chegou para o pintor e disse que acharia que os turistas gostariam de visitar aquele lugar que “parecia o Egito”.
Parecer o Egito era o certificado que Brennand havia transformado a antiga olaria da família em algo de difícil equivalência, misterioso, um outro planeta... “A gente ainda não entende o Egito, por mais que os historiadores estudem, por mais que livros sejam escritos, por mais que a linguagem seja decifrada”.
Brennand sabe que os egípcios “inventaram” o olho humano, ao criar padrões de beleza e ao definir limites estéticos. Junto à beleza, inventaram uma arte que se erguia aos céus em busca de alguma coisa – algum deus, talvez outros homens, alguma lembrança...
No dia dos mortos de 1971, Brennand começou a erguer seu Egito pessoal, seu planeta, uma civilização à imagem e semelhança de um punhado de lembranças. “Não esqueço a data, porque o dia dos mortos a gente jamais esquece”.

 

Fonte: JC On Line